Plantas baixas
Lembrar das dimensões de um
quarto é, de certa forma, lembrar da dimensão dos amores que por ali passaram.
Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor
de novelas
"Não sei se a coisa se dá só
comigo ou se há um clube cheio de membros, mas tenho a mania, ou melhor, a
necessidade, de guardar, nos arquivos da memória, as plantas baixas dos lugares
onde morei. Volta e meia, falando no telefone, no escritório, em vez dos
rabiscos abstratos usuais, eu me flagro tentando recriar as plantas das
diversas moradas, como se elas pudessem me ensinar outra vez a minha própria
geografia. E até podem, porque, no processo, os traços acabam por se tornar
paredes e o ambiente ressurge do passado, como num passe de mágica. Lembrar das
dimensões de um quarto é, de certa forma, lembrar da dimensão dos amores que
por ali passaram e, a cada nova visita, descobre-se um novo detalhe que andava
esquecido. Como é certo que Deus está nos detalhes, acho que o hábito é
saudável. Tenho até certa inveja de quem viveu a vida toda numa única casa,
porque sempre são sólidas as pessoas que conhecem perfeitamenteo terreno onde
pisam. Eu tive muitas casas e muitos abrigos, portanto guardo uma quantidade de
plantas amontoadas na lembrança e catalogá-las, sem que acabem misturadas num
passado comum, é tarefa para alguns dias de devaneio.
Ainda hoje mesmo, eu rabiscava a
casa de meu avô, na Ilha do Governador, que mais tarde, por herança, passou a
ser de papai e que existe até hoje. A casa era grande. Dois andares, cinco
quartos, dois banheiros na extremidade do corredor, um quintal cheio de gatos e
a ensolarada sensação de que ali o tempo descansava. No térreo, havia um salão
comprido que, na época de meu avô, ostentava dois barcos de corrida pendurados
no teto, porque vovô adorava remo, entre outros esportes. A casa ficava vazia a
maior parte do ano, olhando a enseada, à espera das férias de verão. Nós
morávamos nos fundos do terreno, que cobria toda a extensão do quarteirão, já
que nosso sobrado dava para a avenida e, nas noites de verão, quando se pescava
siri e o enorme circulador de ar rangia seus ferros, voltar para casa pelo
terreno escuro era assustador.
Foi ali, no corredor do andar
superior que uma tia, certa vez, viu uma alma. Ela, segundo o relato, era
mocinha, tinha 14 anos, embora já fosse noiva, prometida. Certa madrugada,
acordou com muita vontade de urinar e não se incomodou em acender a luz, já que
o luar iluminava tudo. Como a casa estava adormecida, também não se preocupou
em fechar a porta e instalou-se no vaso que fitava o corredor. A alma surgiu
bem lá na frente e veio em sua direção, como se flutuasse. Apavorada, com as calcinhas
arriadas no meio das pernas, ela entendeu que a alma tinha um recado para lhe
dar, mas não lhe deu a chance de cumprir a tarefa. Gritou com toda a força e a
mensageira desapareceu, assim que a casa se iluminou alarmada.
– Hoje eu sei que ela tinha vindo
me dizer pra não casar com seu tio. – ela encerrava a história. – E eu, burra,
não entendi o recado.
Minha tia já não vive mais. Mas seu grito ainda ecoa naquele corredor. Eu
termino a planta baixa do piso superior e calculo que a alma deve ter surgido
bem na porta do meu quarto, cuja janela abria-se para a mangueira em flor e
onde eu ardia no pecado da adolescência.
Mas isso já é outra história."